...algumas semanas depois...
O voo saiu numa manhã nublada, com o sol tentando romper nuvens que pareciam algodão velho.
Luna embarcou com o coração leve e uma mala pequena, cheia de roupas quentes e expectativa.
Heitor segurava as passagens, os documentos, e uma calma que contrastava com a inquietação dela.
— Você tá animado? — ela perguntou, já no portão de embarque.
— Eu gosto de avião — ele respondeu, sorrindo. — Gosto da sensação de estar entre o céu e lugar nenhum.
Ela soltou um riso nervoso.
— Já eu fico com frio no estômago.
— Então vem do meu lado. Te mantenho aquecida.
Mas, apesar da segurança aparente, Heitor escondia outra coisa por baixo da calma:
uma inquietação que não vinha do voo… e sim de Luna.
De ver ela tão empolgada.
Tão viva.
Tão solta.
Como se aquele mundo novo pudesse levá-la para longe.
Mesmo com ele ali, do lado.
No avião, Luna grudou o rosto na janelinha.
— A gente já tá acima das nuvens? Isso tudo branco é o quê?
— Nuvem.
E sim, já tamo voando alto.
Ela se virou pra ele.
— Você parece ter feito isso mil vezes.
— Só gosto de observar as rotas. Saber por onde a gente vai passar.
— Controle, né?
— Segurança.
Ela assentiu. Mas não comentou.
Era cedo ainda pra discutir as palavras que Heitor usava quando queria dizer “possessão”.
O Chile era frio, vibrante e cheia de cheiros novos.
No caminho até o chalé, a neve começou a cair.
Fiapos brancos no vidro.
Cristais dançando no ar.
Luna arregalou os olhos como uma criança.
— HEITOR… É NEVE! É DE VERDADE!
Ele sorriu. Um sorriso real. Raro.
Mas que logo se apagou quando o motorista do táxi fez um comentário elogioso sobre o sotaque dela.
Heitor não respondeu.
Apenas envolveu os ombros de Luna com o braço, forte.
Demais.
Ela não notou — estava ocupada demais com a beleza do momento.
Mas a neve não foi a única coisa que começou a cair naquele dia.
O chalé era pequeno, charmoso, com lareira e uma banheira funda de madeira.
Luna se apaixonou pelo cheiro da madeira molhada, pelos carpetes macios, pelo silêncio absoluto da neve caindo lá fora.
Tirou o casaco, girou no meio da sala, de braços abertos.
— Parece filme. Parece um sonho. Obrigada por isso, Heitor.
Ele a puxou pela cintura, colando os corpos.
— Você só tá aqui por minha causa.
Ela parou.
— O que foi isso?
— Nada. Tô dizendo que fiz tudo isso pra te ver feliz.
Ela beijou a bochecha dele.
— Então fica feliz comigo. Não precisa me lembrar disso o tempo todo.
À noite, foram jantar num restaurante no centro.
Luna estava linda.
Calça justa, blusa preta colada no corpo, cabelo solto e um batom vinho que fazia os olhos dela parecerem perigosos.
Os garçons olhavam.
Outros turistas também.
Heitor segurava sua mão sob a mesa, os dedos apertando com mais força do que carinho.
— Você sempre se arruma assim pra sair?
— Como assim?
— Assim… chamando atenção.
Ela soltou a mão.
— Heitor…
— Tô perguntando. Só isso.
— A gente viaja pra um país lindo e você quer brigar por causa da minha roupa e maquiagem?
Ele respirou fundo.
— Não tô brigando. Só tô perguntando.
— Tá. E eu tô te respondendo: sim. Me arrumo assim porque eu gosto. E porque posso.
O silêncio entre eles foi cortado apenas pelo som do garfo dela batendo no prato.
De volta ao chalé, Luna subiu sozinha.
Tirou a roupa em silêncio. Entrou na banheira, sem chamar ele.
Minutos depois, ele apareceu na porta, encostado no batente, só de calça.
— Posso entrar?
— A água tá quase fria.
— Não ligo.
— Talvez eu ligue.
Heitor mordeu o lábio, o olhar mais escuro.
— Tá.
Ela olhou pra ele, cansada.
— Você tá voltando a ser aquele cara que tranca portas.
— É o medo.
De te perder.
De alguém ver o que eu vejo.
De alguém querer o que é meu.
— Eu não sou “seu”, Heitor. Já conversamos sobre isso.
Ele andou até a banheira e ficou ao lado dela.
— Então me diz: o que sou seu?
Ela pensou por um momento. Depois respondeu:
— Você é o homem que eu escolho.
Mas eu não escolho grades. Nem vigilância. Nem crise de ciúme disfarçada de cuidado.
Ele passou a mão pela água, tocando a perna dela.
— Tá.
Ela não respondeu.
Mas não recuou o toque.
Mais tarde, deitada no colchão frio, Luna se virou de lado e murmurou, com os olhos quase fechados:
— Eu esperei tanto tempo pra ver a neve.
E agora que tô aqui… sinto um gelo em você.
Heitor ficou em silêncio.
Ela então completou:
— Não estraga o que a gente tem… tentando me prender de novo.
Ele se aproximou por trás, abraçou ela pelas costas e sussurrou:
— Então me ensina a ser livre contigo.
Ela segurou sua mão. Forte.
— Começa por não me apertar tanto.
Ele entendeu.
E afrouxou o aperto.
Mas o gelo…
ficou ali.
Entre o medo de perder…
E o desejo de não estragar.