Luna e Heitor estão longe de casa, mas não tão longe assim dos próprios instintos.
Na manhã seguinte, a neve ainda caía.
Luna saiu da cama antes dele, vestiu uma calça térmica, blusa de gola alta e os cabelos desajeitado. Pela primeira vez desde que chegaram, queria explorar sozinha.
Fez café, colocou um bilhete ao lado da xícara dele:
“Fui andar um pouco. Volto antes do almoço.
Não me liga. Preciso ouvir só o barulho da neve hoje.”
Heitor acordou com o silêncio dela.
Leu o bilhete. Sorriu. Depois franziu a testa.
Ela saiu sozinha.
Num lugar estranho.
Onde qualquer olhar, qualquer conversa, poderia puxar ela para fora da órbita dele.
Luna caminhava pelas ruelas de pedra, os casacos coloridos das lojas, o vapor saindo de cada respiração.
Sorriu para uma mulher que vendia chocolates artesanais.
Entrou numa livraria pequenininha, toda feita de madeira, onde o som era só o virar das páginas.
Ali, sentada com um livro sobre mitologia no colo, pensou:
“Talvez liberdade seja isso. Ter onde voltar, mas escolher se afastar um pouco.”
E naquele pensamento, Heitor não era prisão.
Mas podia ser, se quisesse.
Quando voltou ao chalé, a porta já estava aberta.
O fogo na lareira estava aceso, a música ambiente tocava piano e algo francês, suave demais para sua atual inquietação.
Heitor estava na cozinha, cortando morangos com movimentos lentos, quase ameaçadores.
— Bom dia — ela disse.
— Boa tarde — ele corrigiu.
— Perdi a hora. Fiquei lendo. Tomei um chocolate quente que parecia feito por um deus.
— Sozinha?
Ela parou perto dele.
— Sim. Eu disse que precisava de um tempo.
— Você me deixou aqui. Num lugar que você não conhece direito. Sozinha.
— Heitor… eu só caminhei. Você sabe disso.
Não é como se eu tivesse ido embora pra sempre.
— Mas e se alguém tivesse te seguido? Te levado?
— Ninguém me seguiu. Ninguém me levou. Só quem me prende às vezes… é você.
Ele deixou a faca cair sobre a tábua. O som seco quebrou o clima.
— Então me solta.
— Não. Eu quero você. Mas quero você sem tornozelos acorrentados.
— E eu quero você olhando pra mim do jeito que olhou pro cara da loja de chocolate.
— Agora você tá sendo ridículo.
— E você tá sendo provocante sem perceber.
Silêncio.
Tensão.
Desejo e raiva são irmãos gêmeos.
Mais tarde, a tempestade de neve apertou.
O vento uivava pelas frestas das janelas.
O chalé ficou escuro, íntimo, e a banheira foi enchida pela terceira vez em dois dias.
Dessa vez, ele entrou com ela.
Sem pedir.
— Me deixa lavar seu cabelo — ele disse.
Ela entregou a cabeça às mãos dele.
Os dedos de Heitor, antes nervosos, estavam suaves. A espuma escorria, e ele massageava com reverência, como se quisesse apagar as brigas pelo couro cabeludo dela.
— Você me dá medo às vezes, sabia? — ela murmurou, com os olhos fechados.
— Por quê?
— Porque eu nunca sei se você vai me beijar… ou me vigiar.
Ele encostou os lábios no topo da cabeça dela.
— E você me assusta quando some. Porque eu não sei se volta.
Ela ergueu o olhar.
— Hoje eu voltei.
— Mas e amanhã?
— Amanhã ainda sou sua.
Mas por escolha. Nunca por ordem.
Heitor abaixou a cabeça até os lábios encostarem no pescoço dela.
Ela estremeceu.
— Quando você sussurra assim… eu quase perdoo tudo.
— Eu sussurro assim pra te manter aqui.
Ela sorriu, virou o corpo de frente e sentou sobre ele.
— Então me prende do jeito certo.
— Qual?
Ela puxou os dedos dele para sua cintura e disse:
— Com toque. Não com desconfiança.
O vapor subiu ao teto.
A água esquentou demais.
Os corpos também.
Ali, entre o estalar da lareira e a dança lenta da neve pela janela, Luna gemeu contra o peito dele:
— Eu ainda sou livre… mas você me bagunça toda.
E Heitor, arfando entre os cabelos dela:
— Eu ainda sou possessivo… mas você me desarma.
Do lado de fora, tudo era branco.
Dentro do chalé, tudo era quente. Quase perigoso.
Mas, por ora, nenhum dos dois se queimava.
Apenas derretiam… juntos.