O calor foi o primeiro choque.
O avião pousou em São Paulo sob um céu sem nuvens, com o sol alto martelando o asfalto e as placas de concreto do aeroporto.
Luna fechou os olhos por um instante, como quem deixava para trás um sonho frio, elegante e silencioso — e agora precisava acordar.
Heitor desceu com passos firmes.
Não reclamou da espera nas esteiras, nem do calor abafado no saguão.
Pela primeira vez em muito tempo, estava estranhamente calmo.
— Tá tudo bem? — Luna perguntou, arrastando sua mochila pelo chão.
— Tá.
É só o impacto da volta.
— Parece que tudo lá foi inventado. E aqui… é a vida real.
— Talvez tenha sido isso mesmo — ele respondeu. — Um intervalo.
Mas agora a gente volta pro que importa.
Ela franziu levemente a testa, como se questionasse silenciosamente o que exatamente “importava”.
No carro de aplicativo, o silêncio tomou conta.
A cidade passava pelas janelas como uma lembrança barulhenta demais.
Buzinas. Gente com pressa. Prédios cinzas.
A floricultura de Luna, vista de relance, parecia pequena demais depois do que viveram no Chile.
— Vai voltar a trabalhar amanhã? — Heitor perguntou, sem olhar.
— Sim. Quero voltar à rotina.
— Já sente falta?
Ela sorriu de canto.
— Não da rotina. Mas do que ela me lembra: que eu sou eu. E que eu posso sair… e voltar.
Ele engoliu seco.
Não respondeu.
Chegaram em casa ao entardecer.
A Alexa deu boas-vindas em voz suave, e o sistema inteligente abriu as janelas automaticamente.
A brisa quente entrou devagar, como se também pedisse permissão.
— A casa tá com cheiro de coisa parada — disse Luna.
— Vou colocar um incenso — respondeu Heitor, já indo direto ao painel de controle da casa.
Mas antes de ativar qualquer comando, ele parou.
Virou-se lentamente para ela.
— Ou… você pode escolher.
Quer ativar você?
Luna hesitou.
Caminhou até o painel.
E com um simples comando de voz, acendeu as luzes, abriu mais janelas, ligou a caixa de som com uma playlist calma.
— Tá vendo? — disse ele, sorrindo. — Totalmente no seu controle agora.
Ela deu de ombros, mas sorriu também.
— Não é só o sistema da casa que precisa mudar, Heitor.
É você.
— Eu tô tentando.
— Então tenta calado às vezes.
Ele riu, sincero.
Ela riu também.
Era a primeira vez que a tensão entre os dois se dissipava com leveza.
Nos dias que se seguiram, Luna voltou à floricultura.
Acordava cedo, tomava café sozinha e saía antes que Heitor levantasse.
Deixava bilhetes curtos na geladeira:
“Tem pão.”
“Volto às 18h.”
“Não esquece da água pras plantas.”
Heitor sentia falta das mensagens no celular, mas respeitava o silêncio dela.
Às vezes, ia buscá-la na loja.
Outras, apenas esperava com a janta feita.
Luna nem sempre comia.
Mas sempre sorria.
E esse era o sinal de que alguma coisa — mesmo que pequena — ainda estava viva ali.
Num sábado à noite, depois de uma semana morna e sem grandes diálogos, estavam os dois na varanda, bebendo vinho.
A lua estava cheia.
O céu limpo.
E a cidade lá embaixo parecia uma maquete distante.
— Tá estranho, né? — ela comentou.
— O quê?
— A gente.
Depois da viagem. Como se tudo tivesse ficado preso no aeroporto.
— Eu não queria que parecesse isso.
— Mas parece.
Heitor ficou em silêncio.
Depois suspirou.
— Eu…
Eu tô tentando ser alguém mais leve pra você.
Menos dono.
Mais parceiro.
Luna olhou pra ele.
— Mas às vezes parece que você só tá se segurando. Como se fosse explodir a qualquer hora.
— Eu não vou explodir.
— Não?
Porque hoje, quando eu disse que ia jantar com a Érica depois do trabalho, você ficou estranho.
— Fiquei com ciúmes.
Mas não te impedi.
— E é isso que te torna diferente?
— Sim.
Eu ainda sinto tudo. Mas agora tento não agir por impulso.
Luna se aproximou devagar.
Sentou no colo dele.
Encostou a testa na dele.
— Heitor…
— Hm?
— Eu ainda tô com você.
Mas isso não quer dizer que eu pertenço a você.
— Eu sei.
— Só que às vezes… eu gosto que você finja que esquece disso.
Ele sorriu.
— E às vezes… eu esqueço de fingir.
Eles riram juntos.
A tensão virou algo morno, íntimo, confuso — como costuma ser entre duas pessoas que se feriram, mas ainda querem se manter por perto.
Naquela noite, Luna adormeceu no sofá, com os pés sobre as pernas dele, um livro aberto no colo.
Heitor a observou por longos minutos.
Depois levantou devagar, cobriu-a com a manta, desligou a música, apagou a luz.
Ficou olhando pela janela por um tempo.
A cidade abaixo dormia.
Mas dentro dele, a insônia ainda era uma velha companheira.