Ela Viajou para Dentro Dele: Capítulo 25 – Círculos


O sábado amanheceu com cheiro de tinta fresca.
Luna passou horas na noite anterior mexendo nos quadros antigos, alguns inacabados, outros riscados de raiva, de memória ou de descaso.
Agora, um a um, estavam espalhados pelo chão da sala.

Heitor desceu as escadas e parou na metade.

Lá embaixo, Luna estava sentada no chão, pincel na mão, uma camiseta velha cheia de tinta e o cabelo preso de qualquer jeito no alto da cabeça.

Ela parecia em transe.

Ele desceu sem fazer barulho. Ficou ali por uns segundos, observando.

Ela não percebeu sua presença — ou fingiu não perceber.

Mas ele sorriu, quase orgulhoso, quase aliviado.
Ali estava a Luna que ele conheceu pelas entrelinhas das redes, das mensagens esquisitas, dos quadros que ela postava e depois apagava.
Ali estava a garota que o encantou sem saber que estava sendo observada.

— Isso é novo? — ele perguntou enfim.

Ela não se virou.

— Não. É velho.
Mas estou terminando. Pela primeira vez.

Heitor se aproximou. Olhou por cima do ombro dela. Era um quadro circular, com cores em espiral.
Parecia movimento. Mas também parecia prisão.

— Tem nome?

— Círculos.

— Por que esse nome?

— Porque é assim que me sinto às vezes.
Como se estivesse andando em círculos.
Mas agora eu entendo que… mesmo nos círculos, a gente pode mudar o centro.

Heitor se sentou no chão ao lado dela.

— Você vai expor?

— Talvez.
Uma galeria pequena abriu espaço pra artistas independentes.
Pensei em mandar umas fotos. Mostrar meu trabalho.

— Você quer que eu te ajude com isso, posso ser seu investidor?

Ela parou por um instante.
Depois virou o rosto para ele.

— Você quer ajudar… ou controlar?

Heitor mordeu o lábio inferior.
Respirou fundo.

— Quero ajudar.
Mas se você sentir que tô passando do ponto… me avisa.
De verdade.

Luna assentiu, como quem reconhece um esforço difícil de ser feito por alguém como ele.

— Obrigada.

Durante a semana, Luna pintava de manhã, trabalhava à tarde na floricultura e, à noite, revia os quadros com Heitor.
Ele fazia questão de dar espaço, mas sempre comentava.
Às vezes elogiava.
Outras vezes, questionava.

— Esse aqui… tem sangue?

— Tem.

— É seu?

— Não literalmente.
Mas é de uma dor minha.

Heitor encarava os quadros como se estivesse lendo o diário dela.
E, de certa forma, estava.

Na quinta-feira, ela recebeu um e-mail.

“O coletivo Kroma está abrindo um novo ciclo de exposições. Seu trabalho foi aceito para participar da mostra de artistas emergentes, com abertura marcada para dia 22. Esperamos contar com sua presença.”

Ela gritou. Pulou. Chorou.

Heitor a abraçou forte, girando no meio da sala.

— Você conseguiu!

— A gente conseguiu.

— Não.
Você conseguiu.

Naquela noite, enquanto jantavam juntos, Luna colocou dois pratos na mesa, acendeu velas e serviu vinho.
Era simples.
Mas simbólico.

— Por nós — disse ela, erguendo a taça.

— Por você — respondeu ele.

Brindaram.

Comeram devagar.
Riram de coisas bobas.
Falaram da viagem.
E depois, do que viria depois da exposição.

— Eu quero mais disso — disse Heitor.

— Mais vinho?

— Mais vida com você.
Mas do seu jeito.
Não como eu imaginava que deveria ser.
Nem como eu tentei forçar lá no começo.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos.

— Você ainda sente que pode me perder?

— Todo dia.

— E agora?

Ele olhou bem dentro dos olhos dela.

— Agora eu entendo que… talvez amar alguém de verdade seja aceitar que ela pode ir embora.
Mas mesmo assim, escolher ficar do lado dela enquanto ela ainda quiser.

Luna respirou fundo.

— E eu quero.

— Por quanto tempo?

Ela riu de leve.

— Não existe prazo pra quem tá se reencontrando.
Mas enquanto eu ainda olhar pra você e sentir que meu centro mudou…
Eu vou continuar andando ao seu redor.

Depois do jantar, estavam os dois sentados no chão, em meio aos quadros.
Luna recostada nele, com a cabeça em seu ombro.
Heitor com o braço ao redor da cintura dela, respirando leve, sem pressa, sem tensão.

— A gente tá virando o que, hein? — ela perguntou.

— Um caso raro — ele respondeu.
— De duas pessoas que quase se destruíram… e mesmo assim ainda conseguem se reconstruir, uma peça por vez.

Ela beijou o ombro dele.

— Então vamos devagar.
Mas vamos.

— Combinado.

E naquela noite, não foi o sexo.
Nem a tensão.
Nem o controle ou a entrega.

Foi o acordo silencioso de que eles estavam tentando.

Pela primeira vez, não para vencer um ao outro.
Mas para descobrir o que ainda poderiam ser — juntos.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem