Ela Viajou para Dentro Dele: Capítulo 20 – Estilhaços

A neve ainda caía.

Era o quarto dia no chalé.

A pele dos dois já se conhecia melhor do que os móveis da casa.
A banheira já tinha ouvido mais gemidos do que espuma.
E a lareira queimava a madeira como se imitasse o desejo dos corpos que se encontravam sempre — mesmo quando os corações estavam fora de sintonia.

Naquela manhã, Luna acordou antes dele. De novo.

Desceu sem fazer barulho, vestindo apenas a camisa dele e uma meia grossa até o joelho.
Fez café, colocou uma playlist coreana no celular e sentou perto da janela, desenhando a neve com o dedo no vidro embaçado.

Quando Heitor acordou, a primeira coisa que viu foi a cama vazia.

A segunda, o som de risos baixos — ela estava fazendo videochamada com alguém.

Desceu devagar.
Não fez barulho.
Ouviu um trecho da conversa.

— Mãe, tá tudo lindo. Você ia amar isso aqui. Tá frio, mas é um frio bom, sabe?
— …
— Ele tá dormindo ainda. Eu acordei cedo.
— …
— Não, tá tudo bem. Ele tem uns momentos difíceis, mas é só o jeito dele…

Heitor parou ali. A poucos passos da sala.
As palavras ecoaram na cabeça dele.

Momentos difíceis.”
É só o jeito dele.”

A vontade de entrar e sorrir foi esmagada pela raiva.
Ela tá me explicando como um problema? Como um fardo bonito?

Respirou fundo.
Entrou na sala sorrindo.

— Bom dia.

Ela se virou, surpresa.

— Bom dia! Eu tava falando com a minha mãe… quer dar oi?

— Melhor não. Deixa ela te ter um pouco sozinha.

Ele beijou a testa dela, mas o beijo foi seco. Controlado.

Ela percebeu.

O dia foi estranho.

Ele estava presente demais.
Atento demais.
Tocava o celular dela como quem “esquece” que não tem permissão.
Ficava perto demais quando estavam na rua.
Corrigia o modo como ela falava espanhol com os vendedores.

— Você falou “fría” errado. Soou falso.

— E você soou desagradável.

— Só tô te ajudando.

— Não pedi.

Os olhos dela estavam diferentes.
Menos encantados com o entorno.
Mais atentos a ele.

Naquela noite, depois de uma briga silenciosa num restaurante, voltaram pro chalé sem dizer uma palavra.

Ela foi direto para o banho.
Ele ficou olhando o fogo.

Quando ela saiu, enrolada na toalha, ele estendeu a mão.

— Vem aqui.

— Agora?

— Agora.

Ela foi.

Sentou no colo dele com as pernas de lado, o cabelo molhado pingando nas costas dele.

— Tô cansada.

— Eu também.

— De quê?

— De dividir você com tudo.

— Eu sou uma pessoa, Heitor. Não uma senha.

Ele passou os dedos pela coxa dela, lentamente.

— Mas você tem dono.

— Não tenho.

— Tem.
E você gosta disso.

— Gosto do seu corpo. Do seu toque. Da sua boca.
Mas não gosto quando você vira corrente.

— Então me diz: você quer voltar?

Ela respirou fundo.

— Uma parte de mim queria que essa viagem durasse pra sempre.

— E a outra?

— Quer sair daqui antes que a gente se destrua.

Silêncio.

Longo.

Apenas o estalar da lenha na lareira.
Apenas o som de duas respirações mal casadas.

Ele encostou a testa na dela e sussurrou:

— Eu tô tentando não te perder.

— Mas quando você tenta assim… você me afasta.

— E quando você se afasta… eu enlouqueço.

Ela tocou o rosto dele com cuidado.

— Não quero que você enlouqueça.
Mas não quero ser o motivo do seu desequilíbrio.

— Então me ajuda. Fica perto.

— Só se você parar de me puxar com corrente.
E começar a me seduzir de novo.

Ele não respondeu.

Mas naquela noite, ele foi doce.
Ele fez amor com ela como se pedisse desculpas com cada toque.
Como se dissesse: me perdoa por ser assim, mas só sei sentir desse jeito. 
Mas a palavra "desculpa" e "me perdoa" nunca foi dita por ele.

Quando Luna dormiu, o rosto calmo, o corpo quente sob o lençol grosso…

Heitor se levantou da cama.
Foi até a escrivaninha do chalé e abriu o notebook.

Pesquisou voos de retorno.
Datas. Horários. Cancelamento de hospedagem.

A viagem estava chegando ao fim.

Não por escolha dela.
Mas por decisão dele.

Ela não sabia.
Mas ele já tinha começado a voltar.
Sem avisar.

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