A neve ainda caía.
Era o quarto dia no chalé.
A pele dos dois já se conhecia melhor do que os móveis da casa.
A banheira já tinha ouvido mais gemidos do que espuma.
E a lareira queimava a madeira como se imitasse o desejo dos corpos que se encontravam sempre — mesmo quando os corações estavam fora de sintonia.
Naquela manhã, Luna acordou antes dele. De novo.
Desceu sem fazer barulho, vestindo apenas a camisa dele e uma meia grossa até o joelho.
Fez café, colocou uma playlist coreana no celular e sentou perto da janela, desenhando a neve com o dedo no vidro embaçado.
Quando Heitor acordou, a primeira coisa que viu foi a cama vazia.
A segunda, o som de risos baixos — ela estava fazendo videochamada com alguém.
Desceu devagar.
Não fez barulho.
Ouviu um trecho da conversa.
— Mãe, tá tudo lindo. Você ia amar isso aqui. Tá frio, mas é um frio bom, sabe?
— …
— Ele tá dormindo ainda. Eu acordei cedo.
— …
— Não, tá tudo bem. Ele tem uns momentos difíceis, mas é só o jeito dele…
Heitor parou ali. A poucos passos da sala.
As palavras ecoaram na cabeça dele.
“Momentos difíceis.”
“É só o jeito dele.”
A vontade de entrar e sorrir foi esmagada pela raiva.
Ela tá me explicando como um problema? Como um fardo bonito?
Respirou fundo.
Entrou na sala sorrindo.
— Bom dia.
Ela se virou, surpresa.
— Bom dia! Eu tava falando com a minha mãe… quer dar oi?
— Melhor não. Deixa ela te ter um pouco sozinha.
Ele beijou a testa dela, mas o beijo foi seco. Controlado.
Ela percebeu.
O dia foi estranho.
Ele estava presente demais.
Atento demais.
Tocava o celular dela como quem “esquece” que não tem permissão.
Ficava perto demais quando estavam na rua.
Corrigia o modo como ela falava espanhol com os vendedores.
— Você falou “fría” errado. Soou falso.
— E você soou desagradável.
— Só tô te ajudando.
— Não pedi.
Os olhos dela estavam diferentes.
Menos encantados com o entorno.
Mais atentos a ele.
Naquela noite, depois de uma briga silenciosa num restaurante, voltaram pro chalé sem dizer uma palavra.
Ela foi direto para o banho.
Ele ficou olhando o fogo.
Quando ela saiu, enrolada na toalha, ele estendeu a mão.
— Vem aqui.
— Agora?
— Agora.
Ela foi.
Sentou no colo dele com as pernas de lado, o cabelo molhado pingando nas costas dele.
— Tô cansada.
— Eu também.
— De quê?
— De dividir você com tudo.
— Eu sou uma pessoa, Heitor. Não uma senha.
Ele passou os dedos pela coxa dela, lentamente.
— Mas você tem dono.
— Não tenho.
— Tem.
E você gosta disso.
— Gosto do seu corpo. Do seu toque. Da sua boca.
Mas não gosto quando você vira corrente.
— Então me diz: você quer voltar?
Ela respirou fundo.
— Uma parte de mim queria que essa viagem durasse pra sempre.
— E a outra?
— Quer sair daqui antes que a gente se destrua.
Silêncio.
Longo.
Apenas o estalar da lenha na lareira.
Apenas o som de duas respirações mal casadas.
Ele encostou a testa na dela e sussurrou:
— Eu tô tentando não te perder.
— Mas quando você tenta assim… você me afasta.
— E quando você se afasta… eu enlouqueço.
Ela tocou o rosto dele com cuidado.
— Não quero que você enlouqueça.
Mas não quero ser o motivo do seu desequilíbrio.
— Então me ajuda. Fica perto.
— Só se você parar de me puxar com corrente.
E começar a me seduzir de novo.
Ele não respondeu.
Mas naquela noite, ele foi doce.
Ele fez amor com ela como se pedisse desculpas com cada toque.
Como se dissesse: me perdoa por ser assim, mas só sei sentir desse jeito.
Mas a palavra "desculpa" e "me perdoa" nunca foi dita por ele.
Quando Luna dormiu, o rosto calmo, o corpo quente sob o lençol grosso…
Heitor se levantou da cama.
Foi até a escrivaninha do chalé e abriu o notebook.
Pesquisou voos de retorno.
Datas. Horários. Cancelamento de hospedagem.
A viagem estava chegando ao fim.
Não por escolha dela.
Mas por decisão dele.
Ela não sabia.
Mas ele já tinha começado a voltar.
Sem avisar.