A chuva fina caía sobre a cidade como um véu cinza e calmo.
E ainda assim, Luna saiu de casa com os cabelos soltos, maquiagem leve e os olhos carregados de uma ansiedade que nem ela sabia nomear.
Usava um vestido preto com cortes assimétricos que deixava parte das costas à mostra.
Tinha um ar misterioso, maduro, artístico — como alguém que, enfim, decidira ocupar o próprio nome com orgulho.
Heitor, ao vê-la descer as escadas, engoliu em seco.
Estava de camisa escura e calça social, um blazer pendurado no braço.
Mas nenhum acessório era mais evidente nele do que o olhar.
— Você tá linda — disse, enfim, tentando não parecer pequeno diante da grandeza dela naquela noite.
— Eu sei — ela respondeu, sorrindo com doçura.
Mas sem vaidade.
Apenas… consciência.
A galeria ficava num prédio antigo da zona oeste.
Janelas grandes. Lâmpadas penduradas. Música ambiente. Vinho branco em taças de vidro fosco.
O evento do coletivo Kroma reunia artistas novos e olhares atentos.
Havia jornalistas, curadores, e outros pintores tão ansiosos quanto ela.
Heitor segurava sua mão enquanto entravam.
Mas ao cruzar a porta, Luna soltou — como quem precisava do próprio ar para crescer.
— Quer um vinho? — ele perguntou.
— Quero. Branco, se tiver.
— Vou buscar.
E assim ele ficou para trás, observando enquanto ela era cercada por outros artistas, por olhares curiosos, por perguntas sobre técnicas e inspirações.
Seu quadro, “Círculos”, estava bem no centro da parede de fundo.
Imenso. Marcante. Com cores girando como redemoinhos inacabáveis.
Na parede ao lado, um trecho escrito por ela:
“Às vezes, andar em círculos é o jeito mais honesto de sair de um lugar.
Mas pra isso, você precisa saber quem está no centro do seu giro.”
Heitor leu. Duas vezes.
A primeira, com orgulho.
A segunda, com um leve desconforto.
Porque sabia que ali, no fundo do quadro, no fundo da frase… ele estava.
— Esse aqui é o artista? — perguntou um dos curadores, apontando para Heitor ao lado de Luna.
— Não — ela respondeu com firmeza. —
Esse aqui é o cara que segurou a escada enquanto eu subia.
Heitor sorriu, levemente envergonhado.
Mas por dentro, algo se contorcia.
Ela era dela e não dele.
E mesmo o amor que ele sentia não podia mudar isso.
Com o passar das horas, Luna foi cercada por elogios.
Pessoas pediam seu contato.
Alguns queriam comprar quadros.
Outros, fazer matérias.
Heitor voltou com a segunda taça de vinho, mas ela já estava conversando com um grupo animado.
Ele esperou do lado.
Cinco minutos.
Dez.
Quinze.
Ela o viu — e sorriu. Mas não saiu do grupo.
Ele se afastou, discretamente.
Foi até o fundo da galeria, onde penduraram as obras de outros artistas.
Ficou ali, de mãos nos bolsos, fingindo interesse.
Mas a cabeça estava cheia de vozes:
“Ela tá brilhando.”
“Você devia estar feliz.”
“Por que tá doendo, então?”
Mais tarde, no banheiro, Heitor se olhou no espelho.
A luz branca destacava as olheiras. O terno alinhado parecia sufocar.
— Você não é o centro — sussurrou.
— E tudo bem.
Quando voltou para a galeria, Luna o viu de longe e foi até ele.
— Onde você tava?
— Te dando espaço.
— Pensei que tinha ido embora.
— Nunca.
Eu só precisei… respirar.
Ela tocou o rosto dele, suave.
— Obrigada por ter vindo.
Por ter ficado.
Por ter me deixado… ser.
— Foi difícil. Mas eu tô aqui.
— Eu sei.
— Eu te amo, Luna.
Ela respondeu sem hesitar:
— Eu também te amo, Heitor.
Mas lembra do que eu disse?
Amor não é coleira.
É bússola.
Ele assentiu.
E, por um instante, aquele foi o maior gesto de maturidade que já existiu entre eles:
ele não pediu mais.
Ela não explicou mais.
Apenas seguiram juntos, lado a lado, sem que um precisasse diminuir para o outro brilhar.
No fim da noite, já no carro, ela encostou a cabeça no ombro dele.
— Eu tô cansada.
— Você foi maravilhosa.
— Eu fui eu.
E você… me deixou ser.
Obrigada por isso.
Heitor beijou a testa dela.
— Se eu te tivesse impedido, teria sido como pintar por cima de uma obra pronta.
— E você sabe o que acontece quando alguém faz isso?
— O quê?
— Perde a original.
Pra sempre.
Silêncio.
Longo. Denso.
Mas dessa vez… não pesado.
Apenas necessário.
Chegaram em casa tarde.
Descalçaram-se na porta.
Luna tirou os brincos. Heitor soltou a gravata.
Sentaram-se no chão da sala, cercados de silêncio e luz baixa.
Ela virou o rosto para ele.
— Sabe o que eu pensei hoje?
— O quê?
— Que amar você é como andar no limite de uma corda bamba.
Mas hoje… a corda ficou mais larga.
Heitor sorriu.
— E se um dia você quiser parar de andar?
— Aí eu sento. No meio da corda. E espero você vir me encontrar.
Naquela noite, dormiram de mãos dadas.
Sem pressa. Sem corpo colado.
Apenas dois mundos que decidiram girar no mesmo ritmo.
E pela primeira vez… não havia medo ali.
Só escolha.