O dia da viagem chegou com o céu carregado, como se o clima fosse um reflexo do que pairava entre eles.
Luna fechava a mala com calma, meticulosamente dobrando as roupas, embalando os pincéis e protegendo os cadernos de esboços como quem guardava segredos.
Heitor estava sentado na beira da cama, as mãos fechadas, os olhos presos a ela como se cada movimento fosse um possível ponto final.
— Vai me dizer que ainda tá pensando em ir sozinha? — ele perguntou, com uma leve provocação amarga.
Luna suspirou, sem encará-lo.
— Eu nunca disse que você não podia ir.
Eu disse que não queria que você decidisse por mim.
— Eu não decidi por você.
— Você decidiu sim, Heitor. Você decidiu bancar tudo, decidiu se envolver sem me contar. Você me colocou numa estrada que parecia minha, mas era você quem estava asfaltando desde o começo.
Ele abaixou a cabeça, como quem aceita o golpe. Mas, ainda assim, se defendeu.
— Eu fiz porque te amo. Eu fiz porque eu sei como o mundo funciona. Eu fiz porque, sim, eu quero estar ao teu lado.
E se isso me faz possessivo, controlador, egoísta… então talvez eu seja tudo isso mesmo.
Mas pelo menos você tá aqui, viva, crescendo. Indo pra Nova York. Porque eu empurrei o mundo pra abrir espaço pra você.
Ela se sentou na cama, de frente pra ele.
O olhar dela queimava.
— Você não entende, né? Eu precisava ter construído isso com as minhas mãos, Heitor. Mesmo que fosse difícil. Mesmo que eu caísse.
Eu queria cair, se fosse pra aprender.
Mas você me deu um caminho liso, e agora eu não sei se eu tô aqui porque eu conquistei ou porque você me carregou.
Heitor fechou os olhos por um instante, respirando com força.
— Você tá aqui porque você é brilhante. Eu só tirei o excesso de lama do caminho.
— Você me tirou as escolhas.
— Não, Luna. Eu me antecipei.
Você sabe que essa galeria abre os patrocínios pro público. Eu vi no site deles. Eles deixam a ficha aberta pra empresas, investidores e… qualquer um financiar artistas independentes.
Qualquer um poderia ter te comprado.
Eu só não quis deixar que fosse qualquer um. Eu quis que fosse eu.
Ela o encarou, surpresa com a informação.
— Você se inscreveu?
— Antes que outra pessoa o fizesse. Eu vi seu nome lá, listado. Vi o edital, vi a brecha.
Se não fosse eu, alguém teria entrado. E você sabe como isso funciona… ninguém investe sem querer retorno. Ninguém patrocina sem querer alguma coisa em troca.
Luna apertou os lábios, sentindo o golpe.
Era verdade. Ela sabia que o mundo das artes, especialmente o internacional, era cheio de armadilhas.
— Você acha que isso justifica o que você fez?
— Não justifica. Mas explica.
Se fosse pra você estar vinculada a alguém, eu preferi que fosse a mim.
Eu preferi que fosse alguém que te ama. Alguém que só quer te ver crescer.
— E alguém que ainda assim, quer me controlar.
— Eu quero estar perto, Luna. Eu quero te proteger. Eu não sei te amar de longe.
— Você não sabe me amar de um jeito livre.
— Eu tô tentando aprender.
Ela soltou um sorriso pequeno, um pouco cínico.
— Tentando já é um começo.
⸻
O caminho até o aeroporto foi silencioso.
A mão dela descansava no próprio colo, distante.
A mão dele estava fechada, como quem carregava um nó.
Quando chegaram, Heitor insistiu em levá-la para a sala VIP novamente.
Luna, ainda ressentida, aceitou sem discutir.
— Só estamos aqui porque você paga, né? — ela soltou, provocando.
— Eu só pago. Quem brilha é você.
Eles beberam o champanhe servido ali, mas sem o mesmo encantamento da primeira vez.
Era como se tivessem perdido algo pelo caminho.
Enquanto aguardavam, Luna recebeu uma ligação da curadoria.
Falavam sobre cronogramas, ajustes de exposição, novas possibilidades futuras.
Heitor observava de longe, cruzando os braços, vendo o quanto ela estava confortável, o quanto ela pertencia àquele mundo — e o quanto aquilo já não dependia mais dele.
O ciúmes queimava por dentro.
Mas, dessa vez, ele não agiu.
Ele apenas… sentiu.
Quando a ligação terminou, Luna o olhou de forma séria.
— Você ainda tem medo de me perder?
— Todos os dias.
— E se um dia você acordar e eu não estiver mais aqui?
— Eu já passei tempo demais te segurando com medo disso.
Agora… se você quiser ficar, eu quero que seja por vontade.
Não por amarras invisíveis.
Ela se aproximou, tocou de leve no rosto dele.
— Eu vou, Heitor.
Mas eu quero que você esteja comigo.
Do meu lado. Não atrás de mim. Não me guiando.
Comigo.
Ele sorriu, um sorriso cansado, mas aliviado.
— Você quer mesmo que eu vá?
— Quero.
Mas dessa vez, você vem como meu acompanhante. Não como meu dono.
— Combinado.
— E você promete que vai tentar confiar em mim?
— Eu prometo que vou tentar não me perder de mim mesmo.
Eles se olharam por um tempo longo.
Talvez entendendo, talvez apenas aceitando que amar também era errar.
No alto-falante, o voo foi chamado para embarque.
— Vamos? — ela perguntou.
— Vamos.
— E, Heitor…
— Oi?
— Não se esquece… Eu te escolhi.
Agora você precisa me escolher livre.
Ele respirou fundo, como se aquilo doesse mais do que deveria.
— Eu escolho você.
Livre.
E caminharam juntos, atravessando a fila do FastPass, entrando no portão de embarque, lado a lado.
Mas cada um com um mundo inteiro por dentro.
E, no fundo, Heitor sabia:
Mesmo andando junto, ele ainda precisava aprender a não querer moldar o passo dela.
E Luna sabia:
Mesmo com as rachaduras… ela ainda queria caminhar com ele.