Heitor era um homem de silêncios longos.
Mas não daqueles que acalmam e sim daqueles mistériosos. Seu silêncio era tenso, como um fio esticado ao limite, prestes a arrebentar a qualquer momento. Os olhos dele — frios, estáticos e hipnotizantes— raramente piscavam, como se soubesse de tudo. Carregava nos ombros uma aura de contenção, como se cada palavra que deixasse escapar viesse com custo.
Morava sozinho numa cidade turística no sudeste do país, daquelas que parecem ter sido criadas para cartões-postais. No centro, os turistas tiravam selfies em frente às árvores iluminadas, enchiam sacolas em lojinhas de fondue e tiravam fotos para redes sociais. Tudo era cuidadosamente belo, programado para encantar.
Mas a casa de Heitor não fazia parte desse encanto pitoresco.
Não tinha flores na entrada, nem janelas enfeitadas. Ficava no condomínio de segurança máxima, longe o suficiente do centro para que ninguém a notasse, perto o suficiente para observar tudo.
E, por dentro, era outra coisa.
Não havia poeira, nem cortinas antigas ou armários rangendo. A casa era um santuário de vidro, concreto, aço escovado e silêncio. Minimalista. Clinicamente limpa. Cada ambiente respondia a comandos de voz ou gestos. Alexa estava em todos os cômodos, com movimentos suaves, que obedeciam a qualquer ordem de Heitor com exatidão quase inquietante.
Ele não morava só.
Ele morava com sistemas.
A casa sabia quem ele era, o que ele gostava, quantos passos ele dava, quanto tempo ele ficava parado olhando pela janela. As luzes se adaptavam ao seu humor. As portas trancavam sozinhas. A música só tocava quando ele estava no cômodo certo.
E era nesse universo de controle absoluto que Luna apareceu.
Ele a conheceu pela internet, mas não como qualquer um conhece alguém hoje em dia. Heitor procurava. Vasculhava perfis, procurava textos, emoções não resolvidas. Encontrou Luna como se tivesse tropeçado em uma carta escrita à mão num mundo digital demais.
Ela era bonita, mas o que o atraiu foi o tom melancólico escondido entre suas palavras. Publicava status, falava de dor com suavidade, e uma vez escreveu:
“Olá, você” no grupo de Whatsapp, onde errou o espaço após a vírgula e tudo começou.
Heitor implicou.
Foram semanas falando com ela.
E então...
Meses se passaram e ele a convidou para visitar sua casa.
“Vem. Aqui você pode respirar.
Aqui ninguém vai te tocar, só eu.”
Ela não respondeu de imediato.
Tinha medo. Mas também cansaço.
Luna morava numa cidade do interior que tinha sapos e ela era cercada de obrigações. Os amigos ela tinha poucos. O trabalho a consumia. Ela se sentia exaurida. Invisível. E Heitor… apareceu como algo fora do script.
Ele era bonito, mas havia nele algo magnético. Um poder contido. Um tipo de sombra que chamava.
Ela respondeu três dias depois:
“Preciso ir embora de mim. Ir pra onde?”
E ele mandou:
“Dia 29. Estarei te esperando. A passagem já está paga.”
Apenas de ida.
No dia, Luna não chorou.
Fez a mala com poucas roupas, trancou a porta sem olhar para trás e foi. Entrou no avião com fones de ouvido que não estavam conectados a nada. Passou a viagem observando a paisagem desfocar. Tentava não pensar. Só repetir mentalmente:
“Aqui ninguém vai te tocar, só ele.”
Quando desceu na rodoviária, a cidade parecia encantadora, toda iluminada com decorações sazonais. Mas ela já não pertencia àquele cenário de turistas com sacolas de chocolate. Seu destino estava num carro preto, parado no canto mais escuro do estacionamento.
Heitor saiu do carro como uma sombra que se materializa.
Estava com um sobretudo escuro, mãos nos bolsos e olhos fixos nela.
— Bem-vinda — disse.
A voz era calma, quase baixa demais. Mas ela ouviu.
Ele abriu a porta do carro sem perguntar se ela estava com fome, com medo ou cansada. Apenas a recebeu. Como se ela já fosse dele.
E Luna entrou.
Porque, no fundo, queria pertencer a algo. Nem que fosse ao desconhecido.
O caminho até a casa foi em silêncio. Ele não fez perguntas. Ela não tinha respostas. O carro subiu ruas escondidas, contornou árvores altas, passou por portões automáticos que se abriram ao reconhecerem a presença dele.
E então, a casa.
Ela ficou parada olhando.
Vidro. Aço. Concreto. Tudo limpo demais. Ordenado demais. Morto demais.
— É… diferente — ela disse, tentando sorrir.
— É segura — ele respondeu, olhando nos olhos dela.
— Aqui tudo obedece. Nada sai do controle.
Quando entraram, a porta se fechou sozinha. Um som baixo anunciou sua presença. Um robô disse:
— Bem-vinda, Luna. Sou Alexa. O que deseja?
Ela deu um passo para trás, surpresa. Heitor não reagiu.
— Você vai se acostumar.
— Isso é… assustador — ela sussurrou.
— Você ainda não viu nada.
Ele sorriu pela primeira vez.
Mas era um sorriso frio.
Como quem sabe que já ganhou.
A casa era um organismo.
Observava, ouvia, respondia.
E a partir daquele momento, Luna fazia parte dele.
Mesmo que ainda não soubesse…
…que era impossível sair.