Luna chegou numa tarde nublada.
O céu era um prato de chumbo, e o vento que soprava entre os pinheiros cortava como navalha. A cidade parecia menor do que nas fotos. O centro era bonitinho, florido, como um parque temático europeu, mas bastou subir os morros para tudo se calar.
Lá no alto, onde os turistas não iam, o cheiro já era outro.
Lenha molhada. Terra fria. Madeira antiga.
Heitor a esperava diante do portão, imóvel, com um buquê de flores escuras nas mãos. Eram quase pretas, com pétalas finas, delicadas, e um perfume que lembrava sangue doce e madrugada.
— Lírios da meia-noite. — disse ele, estendendo as flores.
— Isso existe? — ela riu, desconcertada.
— Agora existe.
Ela aceitou. E riu. Um riso leve, involuntário, de quem esquece a si mesma por um instante.
Heitor não disse nada, mas guardou aquele som no bolso como quem guarda um objeto raro.
A casa se abriu sozinha.
O portão eletrônico deslizou devagar, como se hesitasse em permitir a entrada. Luna cruzou a soleira sem pensar.
Não sabia ainda, mas ali terminava o mundo que ela conhecia.
A casa era enorme. Não só em tamanho, mas em sensação.
Havia algo nela que distorcia a lógica. Como se o espaço fosse fluido, instável, feito para confundir. Corredores surgiam onde não deviam. Portas que antes não existiam apareciam de uma hora para outra. Algumas levavam a quartos perfeitamente arrumados, cheirando a lavanda. Outras se abriam para o escuro absoluto.
— Essa casa tem seus próprios humores — disse Heitor certa noite, quando ela se perdeu tentando voltar do banheiro.
— Como assim?
— Às vezes, ela engole gente sem querer.
Ele não sorriu.
Luna engoliu em seco e nunca mais andou sozinha depois do pôr do sol.
Durante o dia, ela explorava os cômodos permitidos.
Havia um quarto só de livros, com poltronas fundas e robôs silenciosos que limpavam o pó mesmo quando não havia pó. Havia uma estufa subterrânea onde cresciam plantas que ela não reconhecia, todas vibrando em tons escuros. E havia uma sala com paredes brancas, onde ela começou a pintar.
Heitor trouxe telas, pincéis, tintas — tudo de melhor. Disse que queria vê-la criar.
— O que você pintar aqui, fica aqui. — ele falou. — A casa absorve. Ela gosta de arte.
Luna acreditou. Ou fingiu acreditar.
Porque, nos primeiros dias, era fácil fingir que tudo era um sonho estranho. Um retiro excêntrico. Uma fuga bem-vinda.
Ela dormia com a cabeça no peito dele, ouvindo o coração lento, compassado, como um tambor de guerra. Ele preparava comidas para ela, doces artesanais, pratos bonitos, sempre em porções pequenas — ele dizia que ela comia mais devagar assim.
— Você precisa desacelerar o mundo — dizia.
E ela achava bonito, quase poético.
Mas a poesia também sufoca.
O tempo começou a se distorcer.
Ela não sabia mais que dia era, tudo tinha que ser perguntado a Alexa
As janelas tinham cortinas pesadas, grossas, e Heitor nunca as abria. Dizia que a luz machucava.
Mesmo com a casa automatizada — com vozes suaves da Alexa guiando os passos dela, com a temperatura perfeita em cada cômodo, com as luzes que se acendiam sozinhas, havia um calor estranho no ar.
Era um calor que não vinha das máquinas.
Mas do próprio chão.
Um calor abafado, denso, como se a casa estivesse viva e respirando por debaixo dela.
Certa tarde, Luna descobriu uma porta destrancada no fim do corredor do segundo andar.
Era uma porta baixa, de madeira escura, com maçaneta fria demais.
Ao abrir, encontrou um quarto vazio. Nenhum móvel, nenhuma janela. Apenas uma parede coberta por fotos impressas em papel fosco.
Eram fotos dela.
Dormindo.
Comendo.
Andando.
Ela ficou ali parada, sem respirar, por um tempo que não soube medir.
Então a voz dele veio atrás, suave:
— Achei que você ainda não tivesse coragem de entrar aqui.
Ela se virou devagar.
— Por quê…?
— Eu gosto de te observar. Assim sei quando você está bem. Ou quando mente estar.
Luna tentou argumentar, mas ele apenas caminhou até ela, pegou sua mão e a conduziu de volta até a sala. Como se nada tivesse acontecido. Como se nada fosse errado.
E ela deixou.
A decisão de partir surgiu numa madrugada em que ela sonhou com a mãe.
A mãe a olhava, com os olhos turvos e dizia:
— Vai, Luna. Antes que essa casa te coma viva.
Ela acordou em pânico.
E no dia seguinte, esperou Heitor sair para a estufa e comprou a passagem.
Para dali a dois dias.
Só ida. Como antes. Só que agora… para longe.
Na noite em que contou a ele, chovia.
A casa estava mais escura do que o habitual. A voz da Alexa parecia mais baixa. Os sensores demoravam a acender as luzes.
— Já comprei a passagem — ela disse, com a voz firme, embora o coração estivesse em desespero. — Tem uma entrevista em Jurassara. Minha mãe me ligou. Eu preciso ir.
Heitor estava sentado, tomando pré-treino.
Virou a xícara devagar.
Olhou para ela como quem escuta alguém anunciar a própria morte.
— Você não vai.
— Heitor… — ela tentou. — É sério. Eu preciso voltar. Só por um tempo. Eu prometo…
Ele se levantou, sem pressa.
— Você ainda não entendeu, Luna.
Deu dois passos à frente.
— Eu disse que você não vai.
Ela sentiu a casa estremecer.
Ou talvez fosse só o chão.
E então entendeu.
O labirinto não era só a casa.
Era ele.
Era tudo aquilo.
E a saída já não existia, a Alexa havia trancado todas as portas e janelas.
Próximo Capítulo
Ansiosos para o próximo capítulo? Será que Luna começa a tentar escapar, testa os limites da casa e de Heitor, e descobre que talvez a única saída… seja mais sombria do que ela pensava?