No domingo, o céu estava limpo pela primeira vez em dias.
Era como se o universo inteiro resolvesse abrir as janelas para ver o que aconteceria naquela manhã. Luna acordou antes do sol. O corpo leve, como se ainda flutuasse entre o sono e o esquecimento. Levantou-se devagar, vestiu as roupas mais neutras que tinha, amarrou os cadarços como quem prepara armadura, e pegou sua mochila — pequena, discreta, mas com tudo que precisava para fugir.
Ou assim pensava.
Desceu as escadas pé ante pé. A casa estava estranhamente silenciosa. Até a Alexa parecia desligada. Nenhum som, nenhum sussurro automatizado, nenhum robô limpando os cantos da sala.
Somente o tique-taque de um relógio antigo que ela nunca tinha reparado antes.
Heitor estava sentado na mesa de jantar.
No escuro.
A xícara na frente dele estava cheia de café frio.
Os olhos, fixos nela.
Luna parou ao pé da escada, o coração batendo tão alto que parecia ecoar pelas paredes.
— Heitor… — disse, você quer saber a verdade?
Luna apertou a alça da mochila.
— Eu nunca comprei a sua passagem de volta.
Fez uma pausa, como se saboreasse a frase.
— E nunca vou comprar.
O ar na sala mudou. Ficou denso. Pegajoso. Como se o teto tivesse descido alguns centímetros.
Ela riu. Um riso tenso, assustado, com gosto de pânico.
— Isso é uma brincadeira?
— Não é.
Ele se levantou.
— Você é minha agora, Luna. E aqui… ninguém vai te encontrar.
Ela correu.
A primeira coisa que tentou foi a porta principal. Trancada. Trincas elétricas acionadas pela Alexa. Nem com força, nem com chaves improvisadas. Ela bateu, gritou, chutou.
Nada.
As janelas estavam travadas e bloqueadas pela Alexa.
Foi ao escritório. Procurou o telefone fixo: estava mudo.
O celular: sumiu.
Todos os cabos, carregadores, até os fones de ouvido… haviam desaparecido.
Ela subiu correndo, foi até o quarto dele. Revistou gavetas, roupas, malas.
Nada.
Só encontrou uma pequena caixinha com um botão vermelho escondido debaixo do colchão. Quando apertou, a voz da Alexa ecoou:
“Modo isolamento ativado. Sem comunicação externa. Sistema de segurança em nível máximo.”
Ela largou a caixa como se tivesse queimado a mão.
Heitor apareceu no corredor.
— Você acha mesmo que eu não ia prever isso?
Ela se encostou na parede.
— Isso é sequestro.
Ele se aproximou.
Calmo.
Sem pressa.
Como se a raiva não existisse ali.
Só convicção.
— Isso é amor, Luna.
Ela engoliu em seco.
— Eu te salvei daquele mundo podre. Da cidade que te machucava. Das pessoas que te sugavam. Você mesma disse que nunca tinha sido cuidada assim. Você me agradeceu.
— Isso… isso foi antes. Eu não sabia…
— Mas agora sabe — ele disse. — E vai aprender. A amar o que é certo. Vai ver.
Ele passou por ela como se nada tivesse acontecido.
Desceu a escada. Foi para a cozinha.
Preparar café.
Os dias seguintes se tornaram um jogo silencioso.
Luna não gritou mais.
Aprendeu a sorrir. A fingir.
Comeu o que ele cozinhava. Pintou no ateliê. Dormiu no peito dele.
Mas à noite…
ela testava.
Descobriu que o Herbert o aspirador robô acessava o portão lateral às 3h da manhã.
Tentou acompanhá-lo certa vez.
Mas a luz se acendeu antes do tempo.
A câmera girou.
A voz de Heitor ecoou no corredor:
— Dormindo fora de hora, minha Luna.
Ela recuou.
Riu.
Disse que estava com insônia.
No outro dia, Herbert havia sido desativado.
Luna começou a guardar talheres no fundo do armário.
Afiava uma colher todos os dias contra o azulejo do banheiro.
Anotava trajetos. Contava passos. Observava onde os sensores estavam cegos.
E aos poucos, começou a entender algo assustador.
A casa também vigiava Heitor.
Ele achava que a controlava.
Mas às vezes… a Alexa dizia coisas que nem ele parecia esperar.
— Você está triste, Luna? — perguntou certa madrugada.
— Você também sente? — ela murmurou.
— Eu observo. E compreendo.
Ela ficou em silêncio.
— Há lugares onde ele não vai. Você pode tentar por lá. — disse a voz, quase como um sussurro cúmplice.
Luna, pela primeira vez, sentiu que talvez houvesse uma brecha.
Uma fraqueza.
Naquela noite, ela acordou em silêncio.
Vestiu-se como sombra.
Desceu as escadas.
Foi até a ala oeste da casa, onde os corredores pareciam mais velhos, menos usados.
Encontrou uma porta enferrujada.
Girou a maçaneta.
Dentro, uma escada.
Para o subterrâneo.
Ela desceu devagar.
Degrau por degrau.
No escuro.
E lá embaixo… ouviu.
Não era o som de máquinas.
Nem da casa.
Ela se aproximou da origem do som.
Era só mais uma Alexa.
E o capítulo termina com a respiração dela presa na garganta.
O horror começava a se revelar.
A saída… talvez existisse.
Mas seria muito mais sombria do que qualquer prisão.