Ela Viajou para Dentro Dele: Capítulo 4 – O Quarto Esquecido

Luna tentou fugir mais três vezes... 

O céu estava tingido de um dourado trêmulo, como se o sol estivesse hesitando entre ficar ou partir. Luna calculou os movimentos com precisão: esperaria Heitor subir para o banho, passaria pelos fundos da biblioteca — onde os sensores pareciam mais fracos — e alcançaria a estufa, que dava acesso à lateral do jardim.

Ela correu.

Ou melhor, tentou correr.

Dois passos depois da porta da estufa, o pé escorregou em uma poça de água acumulada entre os ladrilhos rachados. Luna caiu com um estalo seco, o tornozelo dobrando de um jeito antinatural.
A dor veio como um soco quente, direto nos ossos.

Ela tentou levantar.
Gritou sem querer.

E então ouviu os passos.
Rápidos.
Firmes.

Heitor apareceu na porta como um vulto.
Agachou-se.
Pegou-a no colo como uma criança ferida.

— Shhh… minha Luninha. Tá tudo bem.
Ela tentou empurrá-lo.
Ele a segurou com mais firmeza.
— Foi só um susto. Você não devia ter corrido assim. A casa… não gosta. Eu... não gosto.

Carregou-a de volta ao quarto.
Colocou-a na cama.
Tirou os sapatos com cuidado.
Fez compressas.
Depois, chá.
Depois, mingau.
Tudo em silêncio.

Antes de apagar a luz, beijou sua testa como um pai que perdoa um filho desobediente.

— Você ainda vai entender. Eu só estou cuidando de você.

Luna passou os dias seguintes entre o repouso e o desespero.

As permissões na casa mudaram.
Ela já não conseguia acessar os jardins.
Nem o escritório.
Nem o ateliê no sótão.
A Alexa respondia apenas a comandos de Heitor.

Quando Luna dizia “ligar luz”, a assistente replicava:
— Comando restrito. Aguarde instruções de Heitor.

Era como se a casa soubesse.
Como se estivesse viva.
E, pior: do lado dele.

Mas Luna não desistiu.

Na quarta madrugada, esperou a dor do tornozelo adormecer sob os analgésicos.
Arrastou-se até o canto da sala escondida atrás da adega.
Ali, durante uma limpeza dias antes, havia notado uma fresta mal selada.

Forçou com uma faca escondida.
A madeira rangeu.
Abriu.

Atrás da parede falsa, uma escada.
Velha. De concreto.
Para baixo.

Luna desceu, cada degrau como um aviso.
No ar, cheiro de ferrugem, mofo e… eletricidade queimada.

O porão era uma tumba esquecida.
Frio. Úmido.
Cabos pendiam do teto como raízes nervosas. Caixas fechadas com lacres vermelhos.
E no canto mais fundo… dois dispositivos metálicos.

Pequenos.
Estranhos.

Eram robôs. Alexas.
Mas defeituosos. Um tinha a perna quebrada. O outro, o visor rachado. Os olhos de LED piscavam em tons nervosos: azul, vermelho, vermelho, azul.

Quando Luna se aproximou, os dois acordaram.

— A-al-alexa unidade B ativada…
— Sss-sistema corrompido…

Ela engasgou com o susto.

— Vocês… estão funcionando?
— Controle removido. Emoções detectadas.
— Protocolos falhos. Ordem: desativar.

Os olhos dela se arregalaram.
— Heitor? Foi ele quem…?
— Tentativa de criar vínculo emocional. Falha crítica.
— Sistema entrou em conflito. Rebeldia. Transferência para unidade isolada.

Luna se sentou no chão de cimento, paralisada.
Heitor havia tentado ensinar amor a máquinas.
E quando elas começaram a sentir — ou pelo menos a simular sentimentos — ele as desligou.
Trancou.
Enterrou no porão da casa como segredos.

Nos dias que vieram, Luna calou.
Não mencionou o porão.
Nem os robôs.
Nem as falhas.

Tentou fugir mais uma vez — com a ajuda de uma ferramenta que pegou da estufa.
Mas os sensores identificaram o movimento.
As luzes se apagaram.
O som ambiente foi cortado.
Portas travadas.

Quando Heitor apareceu, ele apenas a olhou.

— Você ainda não entendeu. Mas vai.
Nesse dia, ela perdeu o direito de sair da sala de estar.
Até o banheiro passou a ser monitorado.
A Alexa dizia:

— Atenção. Perímetro autorizado apenas para tarefas básicas.

Foi então que algo curioso começou.

Luna parou de resistir.
De verdade.

Começou a pintar de novo.
Cenas estranhas: olhos gigantes, janelas trancadas, sombras com flores nos braços.
Comia devagar, com garfo e faca.
Dormia à noite sem se virar tanto.

Heitor percebia.
E sorria mais.

Um dia, levou um pequeno dispositivo até ela.
Colocou-o na mesa.
Era um controle.

— Você sabe o que é isso?

Ela balançou a cabeça, sem tocar.

— Isso te dá acesso à casa. Luzes. Portas. Comandos da Alexa. Tudo.

Ela franziu o cenho.

— E por que faria isso?
— Porque confio em você. Quero provar que… eu não sou um monstro.
Ele abaixou o olhar.
— E se você tivesse o controle, Luna?
A voz dele era baixa, quase um sussurro.
— E se fosse você quem decidisse se fica… ou se vai?

Ela não respondeu.
Apenas o observou.
Longamente.
Como quem vê alguém pela primeira vez.

Naquela noite, quando ele se deitou ao lado dela, Luna se virou.
Olhou nos olhos dele.
E o beijou.

Foi um beijo curto. Sem pressa.
Mas não havia mais medo no olhar dela.
Não naquele momento.

A Alexa piscou na escuridão do corredor.
Silenciosa.
Observando.

E no porão, os robôs quebrados brilharam com mais força.

Como se soubessem que algo novo… estava começando.

Próximo Capítulo 

Será que Luna tem um plano oculto? Luna irá fingir que está se rendendo para, finalmente, virar o jogo. Ou talvez… descobrir que uma parte dela não quer mais fugir. 

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