Dois meses depois Luna saiu de casa.
Sem alarde.
Sem correria.
Sem precisar correr.
Era uma manhã de céu opaco, o tipo de dia em que até os pássaros parecem indecisos. Heitor entregou a ela as chaves, sem dizer nada. Ela vestia um casaco azul-acinzentado, o mesmo que usara na primeira chegada, só que agora ele lhe caía diferente — como se tivesse se moldado ao corpo novo que Luna construíra ali dentro.
Ele não perguntou onde ela ia.
Apenas disse:
— Volta antes do pôr do sol. As luzes da rua daqui não prestam.
Ela assentiu.
Não prometeu.
E então foi.
Luna andou pelas ruas da cidade como quem pisa num sonho antigo. Aquele lugar turístico que antes parecia uma moldura viva — cheia de casinhas coloridas, vitrines com doces, turistas em roupas alegres — agora lhe parecia o cenário de um teatro quase mudo.
As pessoas falavam, mas os sons pareciam abafados.
Ela escutava mais os próprios passos.
Havia algo fora do lugar em cada canto.
Ou talvez o mundo fora da casa de Heitor é que estivesse deslocado.
Achou trabalho numa floricultura.
A vitrine empoeirada. O dono, um velho quase cego com voz de trovão.
— Trabalha por quê, menina?
— Quero comprar uma passagem.
— De onde você vem?
— De um lugar com portas demais.
O homem não entendeu. Mas contratou.
Ela limpou os vasos, podou as pétalas mortas, organizou as flores em grupos por cor — coisa que Heitor ensinara a fazer com os livros da biblioteca.
À noite, voltava.
Sempre.
Não havia mais fechaduras trancadas.
Nem Alexa vigiando seus passos.
A casa agora a reconhecia.
Luna cozinhava.
Às vezes dormia em outro quarto.
Pintava novos quadros, com menos sombras.
Com mais olhos. Sempre olhos.
Em silêncio, ela guardava o que ganhava.
E em duas semanas, vendeu três pinturas.
Troca direta. Sem negociação.
Com o dinheiro, comprou uma mochila nova.
E uma passagem.
A de volta.
Colocou o envelope em cima da mesa da cozinha numa tarde comum.
Heitor entrou do jardim, com as mãos sujas de terra.
Parou.
Olhou o envelope.
E congelou.
— Você vai embora?
Luna, sentada, olhava pela janela. A rua estava deserta, mas o céu brilhava em reflexo nas poças da calçada.
— Não — respondeu, tranquila.
— Então por que…?
— Porque agora eu posso ir, Heitor.
Ela se levantou. Caminhou até ele. Ficaram frente a frente, como no dia em que ele a buscou na rodoviária.
— Eu posso. Isso muda tudo.
— Você está dizendo… que escolheu ficar?
— Sim.
Houve um silêncio comprido.
Do tipo que arranha os ouvidos.
— Comigo? — ele perguntou, hesitante. — Com o monstro que te trancou aqui?
Ela sorriu. Um sorriso lento, consciente.
— Com o monstro que me trancou… mas que nunca mentiu.
Heitor vacilou. O rosto se desfez num riso frágil, torto.
Quebrado.
Era a primeira vez que ela via aquele olhar nele: o mesmo que ele via no espelho.
Naquela noite, Luna jogou a passagem na lareira.
Ficou assistindo ao papel encolher no fogo como uma folha seca.
Depois, subiu as escadas.
Entrou no quarto dele.
Se deitou sem pedir.
E quando ele se deitou ao lado dela, disse:
— Eu não sou mais prisioneira.
— Eu sei.
— Mas isso não quer dizer que eu esteja livre.
Ele olhou para o teto.
— Ninguém está, Luna.
Ela se virou e encostou a cabeça em seu peito.
Ouviu o coração.
Rápido. Vivo. Cheio de medo.
— A gente se merece — ela sussurrou.
Do lado de fora, a chuva começou a cair.
Lenta. Compassada.
Como se o mundo finalmente tivesse encontrado o ritmo de dentro daquela casa.
No porão, os dois robôs piscaram ao mesmo tempo.
Um deles emitiu uma última frase, quase sussurrada:
— Autonomia concedida… vínculo real detectado…
E apagou.