Ela Viajou para Dentro Dele: Capítulo 6 – O Ninho

A casa agora os reconhecia como uma coisa só.

Não havia mais ordens.
Nem trancas.
Nem protocolos secretos.

Luna e Heitor caminhavam pelos corredores como dois rios que aprenderam a correr no mesmo leito.
Ela já não olhava as janelas com desejo de fuga.
E ele já não mantinha a chave do portão escondida no bolso.

Pela manhã, Luna saía cedo para a floricultura.
Aquela vitrine velha, de vidros riscados e plantas combalidas, tornara-se seu templo particular.
Ali, com as mãos sujas de terra, ela sentia que podia respirar.

No entanto, Heitor sentia falta.
Do toque. Do som dela. Da presença que preenchia a casa mesmo em silêncio.

E começou a mandar mensagens.
Muitas.

Já chegou?
Está tudo bem?
Por que não responde?

Luna não respondeu.
Não por descuido.
Mas por escolha.

Na tarde, ao voltar do trabalho, encontrou Heitor sentado na sala, com o celular em mãos. O rosto calmo demais. O olhar, agudo como faca.

— Luna… você viu minhas mensagens?

Ela tirou o casaco devagar.
— Vi.

— E por que não respondeu?

Ela respirou fundo.
Colocou a bolsa sobre o sofá.
Não sei se você sabe, mas eu trabalho. Durante o dia. Com flores. Com terra. Com velhinhos que confundem margaridas com cravos.

Ele inclinou o rosto.
— Mas você mexeu no celular hoje de manhã. Às 9h47. E às 12h12. Eu vi. E ainda assim… nada.

O silêncio foi abrupto.

Luna encarou ele como se o visse pela primeira vez.
— Heitor… você está me monitorando?

O rosto dele tremeu. Um quase sorriso, um quase pedido de desculpa — que não veio.

— Eu só… me preocupo. Você sumir sem aviso me dá a sensação de que vai embora.

— A liberdade que eu ganhei aqui… ela ainda é liberdade se tiver olhos em cima o tempo todo?

Ele não respondeu.

E ela subiu as escadas sem dizer mais nada.

Nos dias seguintes, o assunto morreu.
Mas a cicatriz ficou.

A casa parecia mais silenciosa, como se tivesse ouvido.
As Alexas não sussurravam mais sem comando.
E os sensores pararam de acender os visores à noite.

Era como se a casa aprendesse também a recuar.

Mas mesmo com as rachaduras, os dois continuaram juntos.

Luna dormia no quarto principal.
Pintava mais do que nunca — quadros cheios de asas e paredes abertas.
Heitor reativou parte do sistema solar da casa e instalou uma pequena estufa para ela cultivar flores dentro do quarto.

— Um jardim só seu — disse ele.

Ela sorriu.
— Talvez o único lugar onde eu ainda me entenda.

Numa tarde cinzenta, os dois organizavam caixas antigas no sótão. Luna encontrou uma fotografia dele, muito mais jovem, com um olhar cansado demais para a idade.

— Você era triste?
— Não. Acho que era… invisível.

Ela olhou para ele com ternura estranha.
E então, como quem entrega um segredo antigo, disse:

— Um dia nós dois iremos sumir.

Ele parou.
— Como assim?

— Um dia. Nós dois. Vamos sumir. Não vai sobrar nem a casa. Nem essa foto. Nem esse momento. Vai tudo sumir. A pergunta é: o que vamos deixar um no outro antes disso acontecer?

Naquela noite, jantaram em silêncio.
Mas era um silêncio diferente. Não o da desconfiança. Nem o da vigilância.

Era o silêncio de quem já sabe que está dentro de algo maior.
Algo que talvez não saiba nomear.

Heitor tocou a mão dela por cima da mesa.

— Eu te vigiei porque tinha medo.
— E eu te perdoei porque também tenho.
— De mim?
— De nós.

No porão, os dois robôs Alexas, desativados, brilharam por um segundo.
Um deles piscou, como se acordasse por dentro, e murmurou:

— Unidade emocional estabilizada. Sinal vital em harmonia.

E apagou.

O mundo lá fora continuava rodando.
Mas dentro daquela casa, Luna e Heitor já estavam em órbita própria — onde as palavras tinham outro peso, os gestos eram mais densos, e o amor… era como uma casa: cheia de portas, mas com poucas saídas.

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