As manhãs começavam com cheiro de terra molhada e flores murchas.
Luna trabalhava na floricultura, silenciosa. Cuidava das plantas com dedos calmos, mas o olhar sempre parecia distante, como se houvesse algo à espreita em sua mente.
E nas pausas, ignorava as mensagens de Heitor.
Ele via os horários em que ela acessava o celular. E esperava. Uma resposta, um emoji, uma palavra.
Mas nada.
Até que, numa noite, não aguentou mais:
— Luna, você viu o que eu te mandei hoje de manhã?
— Vi.
— E… por que não respondeu?
— Porque eu estava ocupada.
— Mas você mexeu no celular às nove. Depois às onze. Às treze também.
— Heitor… você está me monitorando de novo?
A pergunta veio sem grito. Sem raiva. Mas com uma decepção que cortava mais do que qualquer grito.
Ele abaixou os olhos.
— Eu… me preocupo. Só isso.
— Eu não sou uma planta pra você vigiar o dia inteiro. Eu trabalho.
Naquela noite, sozinho no quarto escuro, Heitor sentiu o abismo entre o amor e a obsessão engolir o que restava do silêncio.
— Alexa, modo de segurança noturna.
— Confirme as diretrizes.
— Nenhuma porta ou janela pode ser aberta entre 20h e 06h.
— Comando confirmado. Segurança ativada.
Era um lembrete: a casa ainda era dele. E, dentro dela, o controle também.
Na noite seguinte, Luna tentou abrir a janela do ateliê.
— Comando negado. Segurança noturna em operação.
Ela riu, sem humor.
— Claro.
Luna passou a responder menos. A falar menos. A olhar menos.
Mas não porque tivesse medo — era o jeito dela.
Ela odiava cobranças, e odiava ainda mais sentir que devia explicações.
Heitor tentava compreender, mas por dentro era como observar uma estrela se apagando lentamente.
Mesmo assim, não recuava. Cozinhava, deixava recados no espelho, rabiscava frases de amor nos guardanapos do café.
E quando Luna sorria, mesmo que pouco, ele se agarrava àquilo como quem segura uma corda no meio do mar.
Uma noite, ela chegou tarde. Mais tarde do que o costume. Ele a esperava na sala, com os olhos semicerrados e os dedos trêmulos.
— Você não avisou.
— Não achei que precisava.
— Eu fiquei preocupado.
— Heitor, eu não posso mais ser a garota que você controla.
Silêncio.
— Tudo que eu fiz foi por você — ele disse, a voz baixa. — Até fechar as portas.
— Mas eu não pedi. Nunca pedi.
Ele fechou os olhos.
— Pediu sim. Quando me mostrava que o mundo te machucava. Quando tremia dormindo.
— Aquilo era dor, Heitor. Não era um contrato.
Ela foi até ele. Tocou seu rosto com ternura inesperada.
— Eu não te odeio. Eu não te desprezo. Mas eu preciso respirar. Preciso ser eu, mesmo que isso te assuste.
Ele não respondeu.
Antes de se deitar naquela noite, já com a luz apagada, ela sussurrou:
— Um dia… nós dois vamos sumir.
A mesma frase.
A que já havia dito antes.
Mas agora havia outra coisa no ar. Um tom mais calmo. Mais real. Mais inevitável.
Heitor ficou em silêncio.
Sentiu, pela primeira vez, que ela estava falando sério.
Não era uma ameaça.
Era só o destino. Anunciado com antecedência.
Ela estava perdendo a paciência com ele.
Na madrugada, enquanto ela dormia, ele ficou olhando para o teto.
Pensando na fresta que havia se aberto entre eles.
E imaginando se algum dia, mesmo com todas as trancas e sistemas, conseguiria fechá-la de novo.
Heitor não entendia como Luna conseguia atravessar suas defesas. Ele sempre foi um homem impenetrável — até ela chegar.