O dia amanheceu nublado.
A casa acordou devagar, como se soubesse.
Heitor pela primeira vez levantou antes do sol.
Não porque tivesse um plano, mas porque não conseguia mais dormir.
Sentou-se na cozinha e ficou olhando a água ferver.
A chaleira apitava com a calma de sempre, mas o som parecia mais longo. Mais grave. Como se o tempo inteiro estivesse hesitando, perguntando se era mesmo agora que tudo mudaria.
Luna acordou depois.
Sem pressa.
Se alongou na cama, sentou na beirada com os pés descalços tocando o chão frio.
Olhou ao redor do quarto, como se o visse pela primeira vez — ou pela última.
Nada havia mudado: os livros na estante, o abajur torto, a tela do Echo Show encostada na parede.
Mas nela, algo tinha se deslocado.
Vestiu uma camiseta larga, prendeu o cabelo em um coque alto e desceu.
Encontrou Heitor na cozinha, imóvel, segurando a xícara com as duas mãos.
Ele não disse nada.
Ela pegou a própria caneca, encheu de café, sentou-se em frente a ele.
Também em silêncio.
Era a primeira vez, em semanas, que aquele silêncio não parecia incômodo.
Era um silêncio limpo. Sem ruído. Sem exigência.
Depois do café, Luna foi até o ateliê.
Abriu a janela. Respirou fundo.
A luz cinza da manhã cobria tudo com uma melancolia bonita, como se o mundo estivesse suspenso — à espera.
Ela ligou a música baixa. Pegou um pincel.
Não pintava há dias.
Mas agora… era necessário.
A tela estava em branco.
E ela sabia que era isso que mais assustava: o branco. A liberdade. A possibilidade total.
Mas também era isso que a atraía.
Começou devagar.
Traços soltos.
Formas abstratas.
Nada que se explicasse.
Mas tudo que precisava sair.
Heitor passou pelo ateliê, a porta entreaberta. Viu o movimento das mãos dela.
Não entrou.
Só observou por alguns segundos, depois seguiu para o jardim.
Começou a arrancar ervas daninhas.
Nunca tinha feito isso antes.
Mas precisava ocupar as mãos.
Se não arrancasse aquilo da terra, arrancaria algo de dentro de si.
Ao meio-dia, Luna chamou:
— Heitor?
Ele foi até ela.
— Sim?
Ela não sorriu. Mas também não estava fria.
Apenas direta.
— Preciso sair por algumas horas.
Ele engoliu seco.
Queria perguntar “pra onde?”, “com quem?”, “vai voltar?”, “já é agora?”
Mas disse apenas:
— Tá bom.
Ela pegou o controle da casa. A Alexa piscou em azul.
— Portas liberadas. Todos os comandos ativos.
— Deseja registrar nova rotina?
Luna não respondeu.
Apenas caminhou até a porta da frente.
Destravou.
Abriu.
O vento da rua entrou pela casa com força.
Era um vento estranho.
Não gelado. Mas cheio de memória.
Ela deu um passo para fora.
Depois outro.
Heitor continuava na cozinha, parado, olhando.
Não correu atrás.
Não gritou.
Não implorou.
Apenas ficou ali.
Esperando.
Luna caminhou pela cidade devagar.
Sem rumo certo.
Entrou numa cafeteria. Pediu um Affogato.
Ficou observando o movimento. As pessoas. Os barulhos.
Sentiu saudade e alívio ao mesmo tempo.
Sentiu vontade de chorar e de sorrir.
Sentiu-se viva.
Visitou a floricultura.
Entregou o envelope com sua demissão.
Sem palavras longas.
Apenas:
— Foi bom enquanto durou.
Passou na papelaria. Comprou um caderno novo.
Na capa, uma borboleta.
Escreveu na primeira página:
“Talvez liberdade seja isso:
caminhar sabendo que posso ir,
mas também saber que posso voltar — se quiser.”
Fechou o caderno.
Voltou a andar.
Chegou em casa quando o céu começava a escurecer.
Abriu o portão com o comando da Alexa.
— Bem-vinda, Luna. — disse a voz mecânica. — Você voltou para casa.
Ela não respondeu.
Heitor estava no jardim.
Sentado no chão, sujo de terra, mãos rasgadas pelos espinhos das plantas.
Luna parou diante dele.
— Ainda tem água quente? — perguntou.
Ele levantou os olhos.
Sorriu, cansado. Aliviado.
— Sempre.
Jantaram em silêncio.
Herbert o robô varreu a sala.
Depois sentaram no sofá, um ao lado do outro.
Sem tocar.
Sem olhar.
Até que, antes de ir dormir, Luna disse:
— Eu não fui embora.
— Eu sei.
— Mas talvez vá.
— Eu sei.
Ela olhou para ele com firmeza.
— E se eu for, você vai trancar tudo de novo?
Heitor balançou a cabeça.
— Não.
— Por quê?
Ele a encarou com os olhos cheios de coisa que não sabia dizer.
— Porque amar não é prender e se você for as portas precisam estar abertas para você voltar.
E eu só descobri isso agora.
Naquela noite, ela não dormiu no quarto.
Nem no ateliê.
Deitou no sofá, coberta com um lençol leve.
Antes de apagar as luzes, sussurrou, pela quarta vez:
— Um dia nós dois vamos sumir.
Mas até lá… quero que a porta continue aberta.
Heitor, no escuro do quarto, escutou tudo.
E sorriu, como quem ouve uma promessa.
Não de eternidade.
Mas de presença real.
Mesmo que temporária.
Próximo capítulo
Capítulo 12 – Partida, será o momento em que Luna realmente sai. Mas talvez não do jeito que Heitor (ou você) esperaria: não como uma fuga… mas como um voo.
Ou, será que ela vai decidir ficar — mas sob uma nova condição.