Ela Viajou para Dentro Dele: Capítulo 21 – Sementes do Despertar

O dia amanheceu cinza, mas não frio.
A neve havia parado.
O mundo estava suspenso num silêncio branco, onde até os pássaros pareciam hesitar.

Luna acordou com uma sensação estranha.
Como se algo estivesse diferente — mas tudo ao seu redor parecesse igual demais.

Heitor já estava vestido.
Camisa preta, calça de tecido escuro.
Ele preparava café, em silêncio, os olhos fixos na prensa francesa como se aquilo o distraísse do mundo real.

— Dormiu mal? — ela perguntou, bocejando.

— Só acordei antes de você. Fui resolver umas coisas.

Ela se sentou na beirada da cama.

— Que coisas?

— Nada importante.

Mentira.
Ela sentiu.
Na voz.
No jeito como ele evitava o olhar.
No cheiro da roupa dele: não tinha perfume, mas cheirava a decisão.

Caminharam até o centro, mas Heitor estava inquieto.

Luna tentou comprar artesanato, conversar com um casal de brasileiros, entrar em uma loja de cristais.
Heitor sempre dizia “depois”, ou apenas puxava sua mão para outro rumo.

— Você quer ir aonde, afinal?

— Só quero andar com você.

— Mas eu queria ver outras coisas.

— Você já viu bastante.

Ela parou.

— O que tá acontecendo?

— Nada.

— Você tá me afastando de tudo.

— Ou talvez eu só queira ficar com você.
Longe do resto.
Como antes.

Ela franziu o cenho.

— Como antes quando?

— Quando você só olhava pra mim. Quando você não queria andar sozinha por aí.
Quando você não ria pra qualquer um na rua.

— Isso não é sobre cuidado. Isso é sobre controle.

— Não é.

— É sim.

Ele não respondeu.

A neve começava a derreter.
Como a paciência dela.

Mais tarde, no chalé, Luna passou um tempo sozinha na varanda, enrolada numa manta.
Tomava chá e observava o mundo branco lentamente se desfazer.

Uma gota escorreu do beiral do telhado.
Caiu no braço dela.

Fria. Nítida.
Como a verdade chegando devagar.

Pensou na viagem.
Nos toques dele.
Nos olhos que a vigiavam em vez de admirá-la.

E então, pensou:

Algo está sendo decidido sem mim.”

Sentiu.

Heitor não tá mais esperando que eu escolha.
Ele já tá escolhendo por mim.
De novo.

Mas estranhamente…
Ela não sentiu medo.

Dessa vez, sentiu raiva.
Sentiu fome.
Sentiu força.

Quando ele voltou, trazendo vinho e pães quentes, encontrou Luna no tapete da sala, desenhando.
Ela olhou pra ele como quem enxerga mais do que o outro quer mostrar.

— Comprou isso onde?

— Padaria do centro.

— Sozinho?

— Achei que você queria ficar sozinha hoje.

Ela sorriu. Um sorriso que ele não entendeu.

— Que bom que tá aprendendo a me deixar respirar.

— Eu tô tentando.
Mas às vezes, me perco.

— A pergunta é: quando você se perde… quem paga a conta?

Ele ficou ao lado dela.

— Por enquanto, ninguém.
Mas se eu perder você, aí sim.

Ela pegou a mão dele. Beijou de leve.
Mas sem paixão. Sem mordida. Sem convite.

— Me diga uma coisa, Heitor.
Se eu pedisse pra ficar aqui mais tempo… você deixaria?

Ele congelou.

— Por que pergunta?

— Curiosidade. Só pra ver o quanto do seu amor é liberdade… e quanto é cerca elétrica.

Ele não respondeu.
Mas ela já sabia a resposta.

À noite, Luna ficou em silêncio.
Não quis filme. Não quis vinho. Não quis cama compartilhada.

Ele entendeu.
Mas não aceitou.

Ficou olhando ela dormir no sofá, enrolada em duas mantas, como quem protege o corpo… do frio e de tudo mais.

Ela murmurou algo no sono.

— Se você decidir por mim de novo… eu vou saber.

Ele ficou ali, ouvindo.
Sem coragem de responder.
Mas com a mala mental já sendo feita.

O retorno silencioso, disfarçado de “planejamento racional”, já estava desenhado.

E ele não sabia: Luna já percebera tudo.
E agora… estava mais desperta do que nunca.

Mais tarde, ela se deitou na cama.
Não disse nada. Mas não trancou a porta.

Heitor deitou ao lado, sem encostar.
O abajur deixava a luz âmbar sobre os lençóis, os dois virados de lado, como estranhos que se conhecem bem demais.

Depois de um tempo em silêncio, ele quebrou o ar:

— Sobre a sua pergunta mais cedo…

Luna virou o rosto, sem falar.

Ele continuou, a voz mais baixa do que o habitual:

— Se você quisesse ficar mais tempo…
Se você dissesse que queria ficar aqui, nesse lugar, por mais uns dias…
Sim. Eu deixaria.

Ela olhou pra ele, surpresa.

— Você deixaria?

Ele assentiu.

— Eu concordaria.
Desde que eu ficasse com você.
E que isso fosse o que você realmente quisesse.
Não o que você inventou pra me testar.

Ela não respondeu.
Mas também não desviou o olhar.

Ficaram ali.
O silêncio entre eles agora era menos denso.
Menos gelo.
Mais início de algo não dito.

No próximo capítulo 

A passagem de volta já estava comprada, mas, se fosse preciso, ele estava disposto a perdê-la e comprar outra, mesmo que não fosse reembolsável. 

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