O silêncio entre eles agora era outro.
Não era mais o silêncio das portas trancadas.
Nem da vigilância exagerada pelo cuidado.
Era o silêncio de um novo tipo de espera.
Luna começou a remexer em suas coisas antigas.
Abriu uma caixa que mantinha guardada no ateliê.
Lá estavam suas coisinhas cartas dobradas, fotos de infância, bilhetes escritos com lápis de cor. Um diário que ela não lia havia anos.
Folheou as páginas como quem tenta tocar um fantasma.
Ali estava sua infância.
As primeiras noites em que sonhou em sair viajando sem rumo pelo mundo.
Havia desenhos também: casas cercadas de grades. Bonecas sem rosto.
E em uma página, uma frase escrita com letra tremida:
“Se um dia alguém me prender, espero que seja por amor. Mas que me deixe ir, quando eu quiser.”
Ela fechou o caderno. Ficou ali, sentada no chão, por horas.
Enquanto isso, Heitor observava à distância.
Via que ela estava mais recolhida, mais introspectiva.
Mas, paradoxalmente, mais inteira.
Ela estava se reconstruindo.
Não como uma mulher que alguém moldou.
Mas como alguém que voltava a si.
Foi então que ele entendeu.
Ou, talvez, aceitou.
Na noite seguinte, a chamou para a sala.
Ela desceu em silêncio com o cabelo solto.
— Senta aqui — pediu ele, com um tom mais leve do que o habitual.
Ela sentou.
Esperou.
Heitor estendeu a mão. Na palma, estava o controle central de acesso total da casa, aquele não tinha restrições. O mesmo que ela nunca havia tocado.
— Está aqui. O sistema está todo desbloqueado. Portas. Janelas. Comandos da Alexa. Tudo.
Ela olhou para o dispositivo. Depois para ele.
— Por quê?
— Porque não faz mais sentido manter você aqui se não for por vontade.
E porque, se você ainda estiver comigo amanhã… eu quero que seja escolha. Não rotina.
Não medo.
Ela pegou o controle com calma.
— Isso é liberdade?
— Não. Isso é só o primeiro passo.
Naquela noite, pela primeira vez, as janelas se abriram sozinhas às 22h.
O ar frio entrou pela casa, perfumando os corredores.
Alexa, pela primeira vez em semanas, sussurrou:
— Modo livre ativado. Todas as rotas estão abertas.
Luna dormiu no quarto com ele.
Deitou-se em silêncio.
E disse, baixinho, antes de fechar os olhos:
— Eu estou aqui. Mas posso não estar amanhã.
— Eu sei.
E dessa vez… ele não tentou impedir.
Dias depois, Luna voltou à floricultura com outra postura.
Comprou uma nova muda de jasmim, e trouxe para casa.
— É uma planta sensível — disse, ao plantá-la na estufa. — Cresce melhor quando ninguém toca muito.
Heitor apenas observou.
E entendeu.
Mais tarde, naquele mesmo dia, ela voltou ao diário.
Escreveu com uma caneta nova, na última página:
“Talvez eu tenha sido encontrada antes de me encontrar.
Mas agora, eu sou minha.
E escolho o que fica — e o que vai.”
Fechou o diário.
Trancou, não com cadeado, mas com fita vermelha.
A casa era a mesma.
Os sensores, os corredores, os ruídos.
Mas algo havia mudado.
Agora, Luna tinha a chave.
E Heitor… havia aceitado a possibilidade de perder ela.